Nascido em Tomar, no ano de 1899, filho mais velho de um abastado industrial e comerciante de calçado, José Gonçalo, sai de casa aos 17 anos, sem completar os estudos liceais.
Dado a convívios e leituras de cariz revolucionário, entrou, muito novo, em forte litígio com o ambiente familiar muito conservador, mesmo provavelmente reaccionário, gerado por seu pai.
Decerto o Congresso Operário Nacional, realizado em 1914 na sua cidade natal, desperta a sua consciência de adolescente, já solidária com as classes trabalhadoras. Começa a escrever. Lê toda a literatura que lhe passa ao alcance. Lateralmente, diverte-se a jogar futebol e é um dos fundadores do União de Tomar, que se vem a tornar um importante clube de província.
Sai da casa paterna para uma situação problemática. Não tem meios de subsistência. Mas o seu ânimo era forte. Encontra trabalho no Comércio em Torres Vedras, mais tarde em Beja, até se fixar em Lisboa. Abraça por inteiro o Jornalismo e a luta política.
Enche o seu espírito com as leituras de Vítor Hugo e Zola. Entusiasma-se com as notícias que vêm da Rússia sobre a Revolução triunfante.
Fausto Gonçalves torna-se companheiro de Alexandre Vieira, Manuel Joaquim de Sousa, Mário Araújo, Cristiano Lima e Mário Castelhano (que vem a morrer no Tarrafal, dando sempre provas de uma força moral e capacidade de liderança por todos reconhecidas), figuras grandes do Anarco-Sindicalismo, ideologia que respeita mas onde encontra incapacidades de afirmação para o futuro da luta dos trabalhadores. Escreve em “A Batalha”, órgão da Confederação Geral do Trabalho - que vem a tornar-se o 2º ou 3º diário português em tiragem, tendo colaboradores como Ferreira de Castro e Julião Quintinha.
Em 1917, a Revolução Russa divide o Movimento Operário e os intelectuais que o doutrinavam, impulsionavam e acompanhavam. Sem nunca cortar laços no plano da amizade com aqueles que não acompanhavam a evolução do seu pensamento, a sua profunda adesão às ideias bolcheviques leva-o a integrar o grupo dos fundadores da Federação Maximalista Portuguesa, que surge em 1919 e vai anteceder a criação do Partido Comunista Português, ao qual pertence desde a primeira hora, estando assinalado como seu membro em toda a vigência da 1ª República. Colabora em “A Bandeira Vermelha”, dirigido por Manuel Ribeiro, além de jornalista, escritor de assinalar. Este é preso em 1920, mas quando sai da prisão assume um comportamento político diferente do que apresentava e torna-se um católico conservador.
Fausto Gonçalves, pese embora um modo de estar que procurava laços de união e não motivos de fractura, vai, ao contrário, acerar a sua luta e o seu discurso.
Em 1920, assume a orientação do Jornal “Era Nova”, órgão da Federação Portuguesa dos Empregados do Comércio, onde ascende a Secretário-Geral. Nesta qualidade, é nomeado Delegado ao Conselho Confederal da Confederação Geral do Trabalho, estrutura ilegalizada em Fevereiro de 1927.
A luta, pela palavra escrita enquanto jornalista e pela “acção fulgurante” (na expressão de um colega) de dirigente sindical, que empreende pelo cumprimento do descanso dominical e das oito horas de trabalho, fica como um marco histórico.
Em 1927/28, é Director do “Alvorada”, de Setúbal, onde colaborara, ainda muito novo, nos anos de 1914/15.
É redactor ou colaborador de títulos significativos da Imprensa Portuguesa, ao longo de vários anos: Além dos citados “A Batalha” e “A Bandeira Vermelha”, deixa o seu nome em o “Diário do Alentejo”, “O Rebate”, “O Tempo”, “Diário Liberal”, “Diário da Noite”, “O Diabo”, “Notícias de Coimbra”, “Gazeta de Coimbra”, Revista “Turismo”, “Mundo Gráfico” e “Luz e Vida”, do Porto.
Em combate permanente, põe em jogo níveis mínimos de bem-estar a que o seu trabalho lhe dava direito. Em momento particularmente duro, perde a residência. Uma noite, acolhe-se num vão de escada, onde um morador depara com ele. Interroga-o sobre a identidade e Fausto Gonçalves diz quem é. Incrédulo, o morador diz-lhe: “- Mas eu leio os seus artigos! V. aqui? Não pode ser…Suba.” O anónimo cidadão oferece o próprio tecto a um jornalista de audiência que acabara de o perder.
Atento ao que se passava no Mundo, às violentas crises económicas e políticas na América e na Europa, ao ascenso dos movimentos fascistas, nomeadamente na Itália e na Alemanha, determinantes para a realidade portuguesa, por um lado, e ao percurso da U.R.S.S., por outro, dá um passo último em favor de um jornalismo de coragem e atento aos movimentos sociais e às convulsões políticas. Em 1932, funda um célebre semanário, “O Relâmpago”, cuja orientação política e conteúdo informativo leva ao seu encerramento.
É o rápido fim deste periódico que vai determinar o seu futuro de jornalista, que o regime de Salazar procura estrangular, exercendo todas as pressões junto da generalidade da Imprensa Diária para impedir a publicação dos seus textos, mesmo que retalhados por uma censura feroz. Era arriscado deixar a um acesso mais geral a palavra vigorosa e mobilizadora de um lutador intransigente.
Fausto Gonçalves orienta a sua actividade para a Imprensa Não-Diária: os atrás indicados “Notícias de Coimbra” e “Gazeta de Coimbra” são exemplo do novo caminho.
A convite do Dr. Vítor Santos, ocupa o lugar de Chefe da Redacção do Boletim da Casa do Alentejo, mais tarde a “Revista Alentejana”, lugar que não abandona até a doença o arrebatar da vida profissional, e ajuda a manter com parcos meios.
Começa a editar, em 1939, o “Almanaque Alentejano”, que mantém ininterruptamente até aos anos 70 e lhe permite algum desafogo económico. Este tipo de publicação, pelo seu carácter popular e tradicional, muito o interessou e fez sair, igualmente, durante alguns anos, o “Almanaque do Algarve”.
Membro do Sindicato dos Jornalistas, do qual possuiu, até à morte, e durante muitos anos, o cartão de sócio nº1, da Associação Portuguesa de Escritores e da Sociedade Portuguesa de Geografia, recebeu vários prémios por trabalhos jornalísticos. Foi agraciado, em 1962, com o Diploma de Honra da União Meridional da Imprensa Periódica, de Nápoles, sob proposta de Gino Rovida, Presidente da Alliance Internationale des Journalistes et Écrivains Latins, à qual pertencia.
UMA INVULGAR INTEIREZA
O que se sabe que fez Fausto Gonçalves como cidadão ou profissional muito raras vezes veio da sua boca. Nunca, nem para a família ou os mais íntimos, a afirmação “fiz isto”. Dele apenas responde o que deixou escrito, os factos que se ligam à sua acção; e sobre o seu estar no mundo, o seu comportamento, apenas podemos contar com os amigos, os companheiros, os contemporâneos.
Sobre o seu carácter, ouvir falar dele ou ler os depoimentos de quem o conheceu é a certeza de uma impressionante unanimidade. Manuel Rodrigues, figura histórica da luta política e sindical, escreve, aquando da sua morte: “Amou sempre a Humanidade, escutou sempre a voz da consciência, animou os fracos, procedeu sempre com rectidão e com a verdade” e “até os próprios opositores, os que não pactuavam com as suas doutrinas, o estimavam e lhe davam muito apreço”. Numa das notícias da sua morte lê-se: “Pela sua natural simpatia, generosidade, qualidades de carácter, poder de comunicação e finura de espírito, Fausto Gonçalves deixa uma indelével saudade e admiração…” O registo dos obituários conhecidos é sempre de idêntico sentido.
Quem acompanhou o seu dia-a-dia, nunca o viu de férias. Das 10 horas da manhã até bem depois do jantar trabalhava sempre, seis dias por semana, ouvindo, em fundo, a melhor Música. Na secretária, uma “Underwood” - embora manuscrevesse quase sempre (tinha um calo na mão direita, de tanto escrever), com a sua “Conklin” - o dicionário de Moreno e prontuários, um do seu amigo Prof. Costa Leão.
Um táxi de motorista conhecido ia buscá-lo a casa todas as manhãs, para o levar onde se centrava parte da sua vida, a Baixa e o Chiado, parando aqui e ali – era um táxi “particular”.
Com frequência, a visita ao Jornal “República” e ao círculo da Livraria Portugal. Ao fechar da manhã, chegava ao seu gabinete da Casa do Alentejo. Aí, o trabalho e o convívio com o eminente grande amigo Dr. Ramon de la Feria.
Pouco falava ao longo do dia, a não ser durante as suas visitas às impressoras. O ambiente das empresas gráficas e o convívio com os tipógrafos enchiam-no de prazer e despertavam-lhe uma energia avassaladora, que todos conheciam. Carinhosamente, aí o tratavam por “Dr. Atómico”, pois queria toda a gente a bulir e a sentir o seu entusiasmo.
Não prescindia do Cinema e do Teatro, de todos os géneros, e regularmente fazia o seu passeio dominical pela linha de Cascais.
AS AMIZADES
Os amigos de Fausto Gonçalves eram para a vida. Além dos camaradas de luta política, como Manuel Rodrigues, podem assinalar-se, entre outros, os escritores Ferreira de Castro - com quem viveu, fraternalmente, momentos de dificuldade, antes do justo êxito de escritor lhe conferir merecido bem-estar material -, Carlos Sombrio, Augusto Ricardo, Nita Lupi, César dos Santos, Santos Fernando e Azinhal Abelho. A propósito deste nome, é de sublinhar que as fundas convicções políticas de Fausto Gonçalves nunca o impediram de ter relações de forte estima com pessoas afectas ao Estado Novo, como era o caso deste autor, que foi Director do Teatro da Trindade. Privou com Maria Archer. Notabilíssimos colegas do Jornalismo, como Jorge Ramos, Carvalhão Duarte, Artur Inês e Abel Pereira pertenceram ao círculo dos amigos chegados, como o maior dos fotógrafos do Alentejo, Eduardo Nogueira, e os já citados Dr. Vítor Santos e Dr. Ramon de la Feria, grande figura de republicano.
ALENTEJANO DE ALMA E CORAÇÃO
Fausto Gonçalves, nascido em Tomar, nunca escondeu as suas ligações à terra de nascimento. Com a sua vida estabilizada em Lisboa, ajudou graciosamente um jornal da sua cidade, o “Cidade de Tomar”, quer do ponto de vista técnico-jornalístico quer, por vezes, com os seus textos.
Contudo, a sua vida é, para além da família, o Alentejo. Muitos, desconhecendo o seu local de nascimento, tomavam-no como alentejano, pois no Alentejo fixara o seu espírito e as suas energias, provavelmente desde quando, saído da adolescência, trabalhou em Beja.
Em 1945, abraça uma tarefa que se vem a tornar missão, por sugestão de Francisco Velez Conchinhas, figura de relevo da Casa do Alentejo: o “Boletim da Casa do Alentejo”, mais tarde, por sua proposta, a “Revista Alentejana”. O seu editor, Dr. Vítor Santos, confia-lhe totalmente, o periódico, onde fica, até ao fim da sua vida, como Chefe da Redacção. Sem um orçamento razoável, para além de escrever, encarregava-se da sua paginação, de grande limpidez, da impecável organização administrativa; ocupava-se, em suma, de tudo para a sua sobrevivência, fosse da publicidade fosse das colaborações, muitas delas de elevado nível. Um ponto a acentuar: a publicação da Casa do Alentejo destoava de prática comum na generalidade da Imprensa Portuguesa: as saudações periódicas e laudatórias aos Presidentes da República e do Conselho. Bem lhe custava, o arrojo.
Contribui decisivamente para a Festa dos Cantadores Alentejanos e levanta a cronologia da Acção Cultural da Casa do Alentejo, que publica em 1956.
Visitava frequentemente o Alentejo, que ficou a conhecer cidade a cidade, vila a vila, terra a terra. Para lá, ia fingir férias, mas estava sempre a trabalhar. Sabia manter as melhores relações institucionais com Governadores Civis e Presidentes de Câmara, em nome da Casa do Alentejo, embora estes soubessem das suas convicções políticas pessoais – o que estava em causa era falar das gentes, dos locais, da História, da Cultura, e ambas as partes reconheciam estes objectivos. Em Évora, a visita a Eduardo Nogueira, de quem recebeu uma notável colecção de fotografias, hoje clássicas, os encontros com Túlio Espanca e no bastião da resistência ao poder vigente que era o jornal “Democracia do Sul” (como, em Portalegre, a “A Rabeca”) eram obrigatórios.
Em várias ocasiões, por diferentes razões, é louvado pela Direcção da Casa do Alentejo.
“ERA NOVA” E “ALVORADA”
O JORNALISMO COMPROMETIDO
COM A LUTA DOS TRABALHADORES
O mais duro e importante combate travado em Portugal pelo cumprimento das 8 horas de trabalho diárias, em particular no Comércio, para além da regra do descanso dominical foi travado de modo inolvidável por Fausto Gonçalves, nomeadamente nas colunas do jornal “Era Nova”, órgão da Federação Portuguesa dos empregados do comércio, que dirigiu (o título inscrito de redactor principal equivalia, ao tempo, ao de Director e/ou Chefe da Redacção, esta última designação hoje caída em desuso).
Anos depois, no “Alvorada”, quer como articulista quer, mais tarde, como Director, alerta para o desânimo, a desmobilização e o indiferentismo que minavam certos sectores da classe, apelando, sem descanso, ao combate dos trabalhadores pelos seus legítimos direitos.
A actividade comercial foi exercida por Fausto Gonçalves muito novo, quando enfrentava difíceis problemas de sustentação. A sua profissão, porém, era o Jornalismo; foi com as palavras e, muitas vezes, com a presença na luta das ruas, que reivindicou sem descanso ou cedências o que era devido aos trabalhadores. O patronato, com efeito, simplesmente ignorava a Lei e, incontáveis vezes, os mais elementares deveres de correcção e humanidade. Os trabalhadores estavam nas lojas todo o tempo que entendessem os seus donos e, demasiadas vezes, em certos ramos, os marçanos dormiam em condições deploráveis nos seus esconsos.
Nas páginas do “Era Nova”, Fausto Gonçalves levantava os espíritos dos empregados do Comércio, que trabalhavam até 16 e17 horas diárias. O descanso dominical era por poucos cumprido, na província. E na edição de 5 de Outubro de 1920, escrevia: “- É necessário que a classe seja uma força capaz de resistir a todas as lutas entre o Trabalho e o Capital. Acima de tudo a vida.(…) Vivamos para o futuro, soframos por ele (…), que nós todos façamos um…” E terminava: “ - O que preferem? A vida ou a Morte? Escolham. Eu prefiro a Vida.”
Foi esta determinação, esta intensidade únicas que fizeram deste jovem de 20 anos, já senhor de uma escrita tensa e poderosa, o líder de uma luta que acabou por conseguir vitórias importantes, num ambiente muitas vezes de resignação, onde meia dúzia de moedas de patrões gananciosos quebravam a resistência dos menos conscientes e os fiscais do Governo, por vezes, abdicavam do rigor.
Por outro lado, é fácil perceber o cunho didáctico e de esclarecimento do “Era Nova” orientado por Fausto Gonçalves através dos nomes que nele se citavam e difundiam: escritores como Vítor Hugo e o célebre defensor das ideias socialistas Robert Owen, fundador das indústrias de fiação New Lanarck, defensor de práticas novas na organização industrial, que respeitassem a dignidade do trabalhador.
“O RELÂMPAGO”
UMA IMPRENSA DE CORAGEM POLÍTICA
Em 1933, Fausto Gonçalves lança, com indizível sacrifício, o semanário “O Relâmpago”, graficamente muito depurado, do qual são publicados três números. É mais do que bem recebido, é um êxito. Contudo, a capa e a página 6 do primeiro traçam-lhe o destino. A perseguição política mais absoluta abate-se sobre o seu Director e Editor e as suas instalações são inutilizadas. A razão é simples de entender para os mais atentos à realidade política. Na capa, a fotografia de Hitler montada sobre uma multidão de militares e um texto explosivo que começava pela frase “Catorze milhões de homens escutaram a voz de Hitler (…) A Europa em chamas (…) eis o que parece estar reservado à Europa…” O artigo consequente terminava: “…isto é o bastante, sem dúvida, para assistirmos a uma nova conflagração, mil vezes mais terrível e mais mortífera e sangrenta que a desencadeada em 1914.”
Um gráfico demonstrava a composição do Parlamento Alemão, após as últimas eleições. Nele o Partido Nacional-Socialista é denominado de Racista.
Não era o tempo, para o regime fascista português, que festejava a ascensão nazista na Alemanha, tolerar que alguém alertasse para o seu verdadeiro significado e para as suas consequências.
É assim que Fausto Gonçalves é levado a um percurso da sua vida de jornalista fora dos grandes órgãos de Lisboa. De qualquer modo, a efémera existência de “O Relâmpago”, pelos temas que abordava e pelo modo como o fazia, pelo desenho gráfico, é um marco inesquecível da Imprensa Portuguesa.
Aliás, já o “Alvorada”, em 1928 – em pleno Estado Novo -, denunciava, com os riscos consabidos, a natureza do regime fascista em Itália, “Nascido do pavor e pânico do capitalismo…” “…o fascismo sonha com aventuras guerreiras, mostra veleidades de partir á conquista de novos domínios arrancados aos povos mais fracos…”
A ESCRITA
O desejo de estudo de Fausto Gonçalves foi, ao longo da vida, contínuo. Um exemplo é o ter sido o mais velho aluno do Istituto Italiano di Cultura in Portogallo. Na sequência de ter sido convidado para orientar graficamente uma publicação da Embaixada Italiana, lá se foi inscrever no Curso Intensivo de Italiano, com 68 anos.
Os hábitos de leitura e o permanente exercício da escrita permitiram-lhe que antes dos 20 anos fosse senhor de um estilo próprio, que serviu os propósitos do seu jornalismo. Apenas com 16 anos, o “Alvorada” publicava textos seus. Um começava com a frase “Maldita seja a guerra!” (era o ano de 1915) e prosseguia “Quando uns nascem já ricos e fidalgos, outros nascem já desgraçados.” “...decepai a cabeça dessa víbora feroz, sugadora de milhões de vidas – o capitalismo sanguinário”. Outro denunciava a inacção dos Governadores-Civis perante os atropelos dos comerciantes ao direito ao descanso semanal e ao horário de trabalho de crianças. Outro, ainda, pasmoso, também de 1915, condenava as toiradas, a partir da Tomar, cidade do Ribatejo, região por excelência da chamada festa brava. Depois de sublinhar a barbaridade dos sofrimentos infligidos ao toiro, terminava assim: “Em todas as corridas de toiros, aparecem três feras: o toiro, o toireiro e o público: (…) O toiro é obrigado, o toireiro obriga-se, o público vae para um acto expontâneo da sua soberana vontade…O toiro provocado defende-se. O toireiro… toireia. O público diverte-se. (…). No público não há senão brutalidade”.
É de registar, para além do impressionante domínio da palavra, que Fausto Gonçalves, não fazia quaisquer cálculos sobre se o que dizia não teria acolhimento em certos segmentos da população. Apenas ouvia a sua consciência.
Na construção dos seus artigos sobressaíam, muitas vezes, títulos directos e poderosos e finais intensos, que não se esqueciam facilmente. Apenas um exemplo, perante o forte desânimo e desunião da classe: a chamada à convergência sob uma bandeira comum, que o leva a terminar assim o editorial do Era Nova de 30 de Janeiro de 1920 intitulado “Unamo-nos!”: “E cada vez seremos mais miseráveis, mais débeis e mais troçados, se, num arranco sublime, não fizermos o que há muito tempo devíamos ter feito, a união estreita e fraternal de todos os trabalhadores no Comércio. Depois de unidos, seremos fortes, invencíveis. E, então, iremos para a luta, a luta sagrada pelos nossos incontestáveis direitos!”
Escreve este texto na altura em que deixa a Direcção do Jornal - que volta a assumir mais tarde - a fim de sinalizar bem que mantinha os seus ideais.
É, também, importante salientar que Fausto Gonçalves se sente impelido, ao menos em determinada altura da vida, a escrever ficção. Escreveu as peças “Tortura”, “Inocente e Condenado” e “Ben-Hur” (a partir da conhecida história) e o romance “Vitória dos Escravos”, cujos originais se tentam recuperar do seu espólio. Nos seus manuscritos encontra-se parte de uma novela, “O aprendiz e a máquina”, cujo texto completo se deve ter perdido. No entanto, as suas páginas iniciais saem, ainda, num jornal de prestígio, o “Notícias de Coimbra”, em forma de folhetim (como acontecia, ao tempo, com certas obras de reputados escritores). Por causa desta obra ou de outra que se perdeu, testemunham alguns – o próprio autor, como se sabe do seu modo de ser, “motu próprio”, nunca o divulgaria - que o Professor Rodrigues Lapa considerava algumas das suas páginas pequenas “obras-primas”.
De qualquer modo, um ofegante quotidiano como jornalista não lhe deixava tempo para ser o escritor que poderia e quereria ser. E é no Jornalismo, profissão de que tinha o maior orgulho, que deixa um nome para sempre assinalável.
A MORTE
Fumador inveterado, uma grave infecção brônquica deita-o à cama. Um ano depois, morre em casa, no último dia de Abril de 1977, no sossego do sono.
A urna de Fausto Gonçalves é coberta pela bandeira de “A Voz do Operário”, como pediu expressamente (à semelhança do que, durante décadas, muitos intelectuais faziam) e do P.C.P., que faz deslocar uma delegação à sua câmara ardente. O “Avante”, assim como a C.G.T.P., no respectivo órgão de Imprensa, sublinham nos obituáros a importância histórica da sua intervenção pelos direitos dos trabalhadores do Comércio.
Nas notícias do seu falecimento, a generalidade dos Órgãos de Comunicação Social, em especial a Imprensa Diária, salientam o seu papel no
mundo da luta dos trabalhadores, além, evidentemente, do percurso da sua carreira jornalística.
Perante a necessidade de trabalhar para o sustento próprio – saído da confortável casa paterna ainda adolescente, por decisão própria -, Fausto Gonçalves empregou-se no Comércio. Como é natural, não podia, ainda, ser o jornalista em que, por irreprimível vocação, se tornou. Mas é a partir do seu olhar para o quotidiano no interior do pequeno comércio que tem a primeira necessidade de escrever e ver o seu texto, já de indignação, publicado. Tem apenas 15 anos e o jornal setubalense “Alvorada”, do qual vem a ser colaborador e, mais tarde, Director, publica a sua nota acerca de uma criança, marçano de uma mercearia-taberna cujo descanso é de 6 a 7 horas por semana. E o que, para além da revolta, logo ressalta no breve texto? A seguinte observação, já tão consciente: “Estas creanças que precisam de ser instruídas e educadas, são antes esbofeteadas e exploradas a torto e a direito pelo patronato!”
No tão jovem Fausto, pulsava já o grande dirigente sindical que viria a ser e culminaria no lugar de Secretário-Geral da Federação dos Trabalhadores do Comércio, com sede em Lisboa para a zona Sul. É, portanto, o Sindicato a “escola de guerra”, como o caracterizou Engels, para o inevitável confronto entre o Capital e o Trabalho, que ele frequenta e onde vem a exercer magistério.
O que mais é de salientar, porém, é a precoce, invulgar e notável lucidez de Fausto Gonçalves ao distinguir os papéis da luta no âmbito sindical e na militância partidária. No seu tempo – e também hoje não abundam – muito poucos tinham o sentido de que é a vida partidária, no que implica de enquadramento e participação cidadã, acompanhada do estudo para a compreensão do percurso das sociedades, que proporciona a compreensão da multiplicidade de fenómenos que determinam o mundo capitalista.
A inscrição sindical, é claro, fornece o apoio para a luta diária pela afirmação dos direitos, a começar no direito ao trabalho, por condições humanas no seu exercício, por salários dignos e contribui, decisivamente, para ver com maior nitidez o que está em jogo na relação patrão/assalariado; ela é um passo necessário para o trabalhador se situar no mundo capitalista. Mas é preciso ir mais longe e, portanto, aí está Fausto Gonçalves a ir para o Arco Marquês do Alegrete, trabalhar na sede da Federação Maximalista Portuguesa, que funda com outros lutadores, como o seu amigo e camarada Manuel Rodrigues. Aquando da morte de Fausto Gonçalves, está ainda vivo e sobre ele testemunha e escreve, comovidamente. A propósito da Federação Maximalista, escreve, argutamente, J. Pacheco Pereira que “o perfil ideológico do membro da F.M.P. é distinto do militante sindicalista”, no sentido de possuir uma cultura política mais avançada.
Com efeito, esta organização recebe anarquistas, sindicalistas radicais e aqueles que (não eram muitos, diga-se) sentiam o apelo da Revolução de Outubro; é com ela que se lançam as bases do Partido Comunista Português, de que é membro logo no acto da sua fundação, em 1921.
O sentido da vida partidária advém do incansável desejo de aprender de Fausto Gonçalves – lembremos o apelo de Lenine “aprender, aprender sempre” – e por isso não se cansa, desde que discursa e escreve para ser ouvido e lido, de convidar ao estudo e à observação do que, de facto, se passava na vida. Aos mais precipitados e emotivos, perante o discurso demagógico dos teóricos do sindicalismo sem credo político que, por todo o lado, se faziam ouvir, aconselhava: pensem no que se passa em Berlim e Moscóvia (como correntemente se designava a capital russa). Era a questão das obediências políticas do movimento sindical – Internacional Comunista ou Internacional Sindicalista.
Ao contrário de alguns dirigentes dos trabalhadores, alguns deles, sem dúvida, corajosos e notáveis, Fausto Gonçalves demonstrou, desde os seus primeiros passos, uma visão esclarecida das relações de poder e de classe numa dada sociedade, que vai além da maior ou menor exploração de um dado patrão do trabalho do seu assalariado. Interessava-o a razão de ser do domínio aviltante de uns homens por outros, do apossamento dos bens fundamentais por alguns com o afastamento deles de todos os outros, interessava-o a caminhada do Homem para uma plena afirmação da Cidadania, pelo entendimento do carácter fundamental do que é social porque só pode ser social. Por tudo isto, Fausto Gonçalves singulariza-se pelo sentido da indispensabilidade da orgânica partidária, pois a luta económica radica na luta política, necessita da consciência ideológica.